terça-feira, 23 de setembro de 2014

Para Ler o Livro de Daniel

INFORMAÇÕES BÁSICAS SOBRE DANIEL

Conteúdo: uma série de histórias sobre como Deus traz honra a si próprio por meio de Daniel e seus três amigos na Babilônia, segui¬da de quatro visões apocalípticas que tratam de reinos futuros e do reino final de Deus.
Profeta: Daniel, um dos primeiros exilados à Babilônia, escolhido para servir como administrador de província primeiro na corte ba¬bilónica, depois na persa.
Data da composição: desconhecida; presumivelmente perto do fim do século sexto a.C. (c. 520 a.C.), embora muitos tenham suge¬rido que o livro date da primeira metade do século segundo a.C. (c.165 a.C.).
Ênfases: a soberania de Deus sobre todas as nações e seus governantes; o cuidado de Deus pelos judeus no Exílio, com promessas de uma restauração final; o presente triunfo e a vitória final de Deus sobre a maldade humana.

VISÃO GERAL DE DANIEL

O livro de Daniel se divide nitidamente em duas partes (caps. 1-6 e 7-12). A primeira contém histórias da corte, principalmente sobre Daniel e três amigos seus, que se mantêm absolutamente leais a Javé, mesmo quando ascendem a posições de importância no Império Babilônico. Há quatro ênfases aqui: (1) na lealdade dos quatro hebreus a Deus, (2) no livramento milagroso deles por parte de Deus, (3) no reconhecimento da grandeza do Deus de Israel por parte dos reis gentios, e (4) em Daniel como intérprete de sonhos por intermédio de dom divino – todas elas realçando a soberania de Deus sobre todas as coisas, incluindo o rei que conquistou e destruiu Jerusalém.
A segunda parte consiste numa série de visões apocalípticas sobre a ascensão e queda de sucessivos impérios, todos os casos envolvendo um governante tirânico vindouro (7.8,24,25; 8.23-25; 11.36-45) – mais frequentemente interpretado como sendo Antíoco IV (Epifânio), dos governantes selêucidas da Palestina (175-164 a.C.), que, devido à desolação que afligiu a Jerusalém e ao fato de ter profanado o Templo, viria a ser o primeiro de uma série de figuras do Anticristo nas literaturas judaica e cristã. Mas, em todos os casos, o foco final é no juízo de Deus sobre o inimigo e no glorioso reino futuro que a guarda o seu povo.

ORIENTAÇÕES PARA A LEITURA DE DANIEL

Em primeiro lugar, é importante observar que na Bíblia hebraica o livro de Daniel integra os Escritos, e não os Profetas. Em parte isso se deve ao gênero do livro – histórias sobre um “profeta” e visões apocalípticas, em vez de oráculos proféticos. De fato, não há nada na literatura judaica ou cristã que se assemelhe a Daniel, um livro que combina histórias da corte e visões apocalípticas. Além disso, o propósito do livro é inspirar e encorajar o povo de Deus que está vivendo sob domínio estrangeiro, não chama-lo ao arrependimento à luz de juízos vindouros. Daniel, portanto, não é em momento algum chamado de profeta, mas visto, antes, como um homem a quem Deus revela mistérios.
Será proveitoso, portanto, dar uma lida na breve descrição do gênero apocalíptico em Entendes o que Lês? (p. 301-303), já que os sonhos e visões nos capítulos 2 e 7-11 apresentam a maior parte das características que definem este gênero – o livro foi gerado numa época de opressão; trata-se, do começo ao fim, de uma obra literária; ele vem por intermédio de visões e sonhos concedidos por anjos; contém imagens de fantasia que simbolizam a realidade; e Daniel recebe a ordem de selar as visões para os últimos dias (8.26; 9.24; 12.4).
Um fato interessante é que os capítulos 1 e 8-12 são escritos em hebraico, enquanto os capítulos 2-7 estão em aramaico, a língua franca no oriente Próximo no século sexto a.C. até o tempo de Cristo. Quanto a isso, há duas coisas a observar. Em primeiro lugar, a parte em aramaico consiste nas histórias e na primeira visão, sugerindo que estas podem ser lidas por todos; já a introdução e as visões interpretadas estão em hebraico, talvez implicando que se destinem apenas ao povo de Deus. Em segundo lugar, a parte do livro escrita em aramaico ordena-se segundo um padrão quiástico:

  • Os capítulos 2 e 7 contém visões semelhantes de reinos futuros, concluindo o reino final e eterno de Deus.
  • Os capítulos 3 e 6 são histórias de livramento milagroso, em que se fez oposição a Deus.
  • Os capítulos 4 e 5 são histórias sobre o fim de dois reis babilônicos, que ambos reconhecem a grandeza do Deus de Israel.


Assim, estas histórias nos contam que Deus está no controle final de toda a história humana (caps. 2 e 7), o que se ilustra com histórias tanto de libertação milagrosa (caps. 3 e 6) quanto da “derrubada” dos dois reis babilônicos (caps. 4 e 5). Todas essas histórias são primorosamente narradas. Para aproveitá-las totalmente, não é má ideia tentar lê-las em voz alta; é assim que se pretendia, originalmente, que o texto fosse lido.
Também é importante, na leitura de Daniel, ter consciência de duas situações históricas; (1) a do próprio profeta e (2) a prevista por ele em suas visões. Assim, os capítulos 1-6 descrevem questões na corte babilônica, do tempo de Nabucodonosor até o primeiro dos governantes persas da Babilônia (c. 605-530 a.C.) – do tempo antes da queda de Jerusalém, quando os primeiros cativos de Judá foram levados à Babilônia, até o tempo logo depois da queda do Império babilônico em 539.
As visões (caps. 7-12) retomam esse período. A Babilônia foi seguida do longevo Império Persa (539 a c. 330 a.C.). então veio o breve Império Grego de Alexandre (333-323 a.C.) que, quando este morreu, foi dividido entre quatro generais (v. 8.19-22). Especialmente interessante para se entender a história judaica intertestamentária é a longa disputa pela Palestina entre os selêucidas (da Antioquia [o norte]) e os ptolomeus (do Egito [o sul]), a que se alude na visão de Daniel 11 (v., p. ex., as notas de estudo na Bíblia de Estudo NVI e da BÍBLIA PENTECOSTAL). A ascensão de Antíoco IV, crucial para Daniel, é descrita em 11.21-32; Antíoco IV buscou eliminar tudo que fosse judaico em Jerusalém, for¬çando os israelitas a adotar a política de helenização que ele impôs às suas terras. Assim, ele proibiu que se guardasse a Lei, e mostrava fa¬vor especial pelos helenizantes (v. 11.28). Seu plano de tomar o Egito acabou sendo frustrado por Roma; ao voltar para casa ele passou por Jerusalém, derramando sua fúria sobre os judeus — que lhe resistiram —, profanando finalmente o Lugar Santo ao erigir nele uma estátua de Zeus, em167 a.C. (11.30,31). Esse evento, que acabou levanto à re¬volta dos macabeus registrada nos livros apócrifos de 1 e 2 Macabeus, é vislumbrado em Daniel 7—11. Dá para imaginar como teria sido ler o livro de Daniel durante esse período — tanto as histórias nos capítulos 1—6 (Deus honra a lealdade e humilhará os reis arrogantes!) quanto as próprias visões (Deus predisse todas essas coisas).
Finalmente, é importante observar que a vinda do reino messiâ¬nico é retratada como ocorrendo depois da derrota de Antíoco, o que de fato ocorreu um século e meio depois — o único reino digno de menção após o de Antíoco não sendo o de Roma, mas o de Cristo.
Em consonância com toda a tradição profética hebraica, esses even¬tos históricos vindouros eram vistos contra o pano de fundo do grande futuro escatológico final de Deus (v. Introdução aos Profetas, p. 205).

UMA CAMINHADA POR DANIEL

1.1-21 Narrativa introdutória: Daniel e seus amigos na corte de Nabucodonosor
Observe como essa narrativa inicial não só apresenta as histórias que se seguem, mas fornece informações valiosas para uma boa leitura do livro de Daniel. Os versículos 1 e 2 dão o contexto histórico, mas também prenunciam 5.1,2. Daniel e seus companheiros sobressaem a todos os outros oficiais de província forçados ao serviço do rei — e isso precisamente porque mantêm a lealdade à aliança quanto às leis alimentares (1.6-20); mas observe também a pequena inserção no versículo 17, que prenuncia a história seguinte. E finalmente, observe que Deus é visto como dirigindo essas questões (v. 9,17).

2.1-49 O sonho de Nabucodonosor é interpretado por Daniel
Essa narrativa serve a três propósitos: exaltar a Deus acima de Nabucodonosor (v. 27,28,36-38,44,45,47), incluindo a exaltação de Daniel aos olhos do rei por parte de Deus (v. 46,48,49); apresentar Daniel como o agente de Deus para interpretar sonhos (v. 14-45); e prenunciar as visões posteriores (v. 31-45). Observe como os dois últimos itens são ressaltados na oração de Daniel (v. 20-23); observe, além disso, que embora o sonho seja interpretado, não há interesse adicional nele a essa altura, meramente intrigando o leitor quanto às visões que hão de vir. Observe finalmente como o versículo 49 prenuncia a história seguinte, em que Daniel não figura.

3.1-30 Salvos da fornalha ardente de Nabucodonosor
Eis que o rei, que o profeta designa como "a cabeça de ouro" (2.38), erige ele próprio uma monstruosa estátua de ouro, e ordena que todos oficiais da província a adorem. Mas assim como Deus zelou por eles no capitulo 1, os três hebreus são livrados (dessa vez milagrosamente) em virtude de sua absoluta rejeição da idolatria (3.16-18). O vigor dessa narrativa deve-se em parte a suas frequentes repetições. Mas sua maior força está na moral que ela contém: o maior rei da terra não é páreo para o Deus eterno; Deus não só liberta em grande estilo os três hebreus da arrogância e ira de Nabucodonosor, mas o rei ainda os promove (v. 30), e ele próprio reconhece a grandeza do Deus deles (v. 28,29), o que por sua vez prenuncia a história a seguir.

4.1-37 A demência de Nabucodonosor
Essa expressão absoluta da soberania de Deus sobre os reis da terra é narrada de forma magnífica, realçada em parte pelo fato de que toda a narrativa é um relato do rei para as nações (v. 1). Ela começa com o reconhecimento da parte do rei de que apenas o reino de Deus é para sempre (v. 2,3; cf. 2.44), prenunciando mais uma vez as visões posteriores (7.14,18,27), e conclui na mesma nota (4.34,35) — depois de o rei arrogante ser rebaixado por Deus à condição de um animal. Observe que Daniel também volta à cena como o intérprete de sonhos (v. 8-27).

5.1-31 O banquete de Belsázar e a ruinada Babilonia
Enquanto lê a historia, visualize o drama; atente também, no entanto para as formas como a história funciona — para lembrá-lo de que o Império Babilónico veio ao fim porque o seu rei não honrou o verda¬deiro Deus (v. 23) e para relatar isso num contexto em que o rei está de¬safiando a Deus ao usar os utensílios sagrados do templo de Jerusalém (v. 2; cf. 1.2) com propósitos idólatras. Mais uma vez, Daniel é a figura central, interpretando agora os escritos na parede.

6.1 -28 Daniel na cova dos leões
Esse terceiro ataque à fé judaica (v. caps. 1 e 3) tem novamente Daniel como protagonista, mas agora com a Babilônia sob domínio persa. Observe o quanto ele corresponde ao capítulo 3: Daniel conhece o decreto, bem como seu propósito e consequências — ser lançado à morte imediata —, mas se recusa a deixar de orar ao seu Deus, é di¬vinamente livrado, e o rei presta homagem ao "Deus vivo" (v. 26). Observe também como Dario ecoa o reconhecimento de Nabucodo¬nosor, afirmando a eternidade de Deus (v. 26,27; cf. 4.34,35).

7.1-28 A visão dos animais do mar
As quatro visões desses capítulos são precedidas da data em que ocor¬reram, Daniel já sendo um homem relativamente idoso. A primeira ecoa itens de 2.36-45, e ao mesmo tempo prepara o leitor para as se¬guintes. Observe que, neste caso, o interesse se concentra no pequeno chifre e no reino messiânico vindouro. Esses elementos são sublinha¬dos: (1) pela forma como a narrativa é construída (o pequeno chifre é apresentado [v. 8], a que se seguem, respectivamente, a cena na corte divina [v. 9,10] e então a sua ruína final [v. 11], e o reino eterno do Altíssimo e e seus “santos”  [v. 18]); (2) pela falta de interesse presente nos outros reinos (v. cap. 8); e (3) pelo interesse singular de Daniel no quarto animal e no pequeno chifre (v. 19,20). Observe também que a parte final da própria visão, a opressão dos santos por parte do pequeno chifre, só é mencionada nos versículos 21,22, para que a interpretação possa se concentrar nesse aspecto, na derrota final do pequeno chifre e no reino eterno de Deus (v. 25-27).

8.1-27 A visão do carneiro e do bode
O segundo e terceiro reinos do capítulo 7 são agora concebidos como um carneiro e um bode, e interpretados como os medos e os persas, seguidos da Grécia. A vitória de Alexandre, o Grande, sobre a Pérsia é retratada (v. 6-8,21), bem como a subsequente divisão do império entre seus quatro generais (v. 8b,22), de onde acabaria vindo o peque¬no chifre (v. 9-13,23-25). Observe mais uma vez o foco da visão — os fatos de que ele ataca os santos e sua adoração, e de que ele próprio será destruído, mas não por meio de poder humano.

9.1-27 Interpretação da profecia de Jeremias
A oração de Daniel (v. 4-19) constitui a parte central do livro, refle¬tindo o merecido Exílio de Israel por sua infidelidade à aliança, mas exprimindo esperança no perdão e na misericórdia de Javé (o único lugar em Daniel em que aparece o nome "Javé"). A oração é enquadrada pela necessidade de uma nova aplicação dos setenta anos de Jeremias (v.1-3,à luz da devastação a ser causada pelo pequeno chifre). A resposta (v.20-27) consiste num uso de números típico do gênero apocalíptico, o número original sendo multiplicado por sete (= ao cabo da devastação causada pelo pequeno chifre), o que, mais uma vez de maneira típica é retratado contra o pano de fundo do fim de todas as coisas.

10.1-12.4 O anjo entrega a revelação do futuro
Todas as visões até aqui apontam para essa visão final. Observe os intricados preparativos para ela no encontro de Daniel com o anjo em 10.1-21. O que se segue, após uma introdução (11.2-4) que retoma parte da visão em 8.19-22, é uma previsão do conflito entre os selêucidas e os ptolomeus pela “Terra gloriosa” (11.5-20; cf. Jr 3.19). Mas, como antes, tudo isso leva à ascensão e queda de Antíoco IV (Dn 11.21-45), o foco estando especialmente na sua devastação de Jerusalém, mas também predizendo, mais uma vez, o fim dele. E, assim como antes, seu fim é retratado contra o pano de fundo do fim de todas as coisas (12.1-4), cujos aspectos centrais serão a ressurreição dos mortos e a recompensa eterna dos justos.

12.5-13 Conclusão
Observe que as perguntas finais de Daniel, “Quanto tempo haverá até o fim destas maravilhas?”, E “Qual será o fim destas coisas?”, são novamente enunciadas por meio de esquemas numéricos crípticos, enquanto o próprio Daniel descansará até o dia da ressurreição.


O livro de Daniel, embora se concentre num período em particular da história de Israel, antevê o grande reinado eterno de Deus inaugurado por Jesus Cristo; ele teve, dessa forma, grande influência sobre as imagens usadas por João no Apocalipse.


Extraído de Como Ler a Bíblia Livro por Livro – Um guia de estudo panorâmico da Bíblia, de Gordon Fee e Douglas Stuart, Edições Vida Nova, 2013, páginas 241-248.

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